A VIDA ESTÁ EM OUTRO LUGAR | LIFE IS ELSEWHERE

Sou atravessada e constituída por essas memórias familiares – sejam elas verdadeiras ou fantasiosas.

I am crossed and constituted by these family memories – whether they are true or fanciful.

Em meados de 2020 realizei uma grande mudança, física: deixei de habitar a casa onde morei por 20 anos em direção a um apartamento cujas dimensões eram incompatíveis com o acúmulo oferecido pelos grandes espaços. Era urgente revisitar os meus pertences, escolher quais coisas levar comigo e quais me desapegar. Eis que me reencontro com coisas sabidamente guardadas por mim, mas esquecidas: álbuns de fotografias, aos montes, objetos pessoais e inúmeras cartas que pertenceram aos meus pais, aos meus avós. A família e sua história reunidas em um baú a ser vasculhado.  

Revistar esses objetos foi como abrir as portas do grande repositório da memória, donde se pinçam lembranças, desvanecidas de suas verdades, para construir novas narrativas a partir dos fatos, tanto pelos experimentados no corpo quanto aqueles apenas interiorizados pela oralidade. Desde então tenho me dedicado a resgatar essas pistas das vidas dessas pessoas que são a minha família. Lembrar das histórias contadas pela minha mãe, Elza, as quais, por sua vez, lhes foram contadas pelo seu pai, meu avô. Vô Vostal chegou no Brasil, em 1924, vindo da Tchecoslováquia. Parentes consanguíneos, hoje, em função da distância temporal, se me revelam, sob certos aspectos, desconhecidos. Ou, conforme disse Lygia Fagundes Teles, “É difícil separar a ficção da invenção, a fantasia da memória. Não há uma linha separando o que você viu do que você sonhou. A imaginação ocupa o espaço da memória”.

Embora enviesadas, certas histórias se comprovam nos documentos e objetos herdados, provas de uma cronologia da vida dessas pessoas às quais denomino família. Percebo que cada objeto encontrado integra uma construção coletiva de memórias, moventes desde lá até aqui, em mim. Cada pessoa é um livro; cada pessoa é um repositório de imagens; cada pessoa é um particular conjugado no plural; cada pessoa também sou eu. Assim, sou destinada a ocupar essa memória inventivamente. A imaginação é o instrumento por meio do qual me é possível adentrar esse tesouro, embora a sua língua ainda me soe incógnita. Não sei falar nem ler em tcheco. Não sei se já soube ou se saberei. Sei apenas que sou atravessada e constituída por essas memórias familiares – sejam elas verdadeiras ou fantasiosas. 

In mid-2020, I made a big physical change: I left the house where I lived for 20 years and went to an apartment whose dimensions were incompatible with the accumulation offered by large spaces. It was urgent to revisit my belongings, choose which things to take with me and which to let go. Here I find myself with things known to be kept by me, but forgotten: photo albums, in piles, personal objects and countless letters that belonged to my parents, my grandparents. The family and their history gathered in an ark to be searched.

Searching these objects was like opening the doors of the great repository of memory, from which memories vanished of their truths are picked, to build new narratives based on the facts, both by those experienced in the body and by those only internalized by orality. Since then I have been dedicated to recovering these clues from the lives of those people who are my family. Remember the stories told by my mother, Elza, which, in turn, were told by her father, my grandfather. Grandpa Vostal arrived in Brazil in 1924 from Czechoslovakia. Consanguineous relatives, today, due to the temporal distance, are revealed to me, under certain aspects, unknown. Or, as Lygia Fagundes Teles said, “It is difficult to separate fiction from invention, fantasy from memory. There is no line separating what you saw from what you dreamed. Imagination occupies the space of memory”.

Although biased, certain stories are proven in documents and inherited objects, evidence of a chronology of the lives of those people I call family. I realize that each object found integrates a collective construction of memories, moving from there to here, in me. Each person is a book; each person is a repository of images; each person is a particular conjugate in the plural; each person is also me. So I am destined to occupy that memory inventively. Imagination is the instrument through which it is possible for me to enter this treasure, although its language still sounds unknown to me. I can't speak or read Czech. I don't know if I already knew or if I will. I only know that I am crossed and constituted by these family memories – whether they are true or fanciful.

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